A Mulher do Chá

Numa geniál história aos quadrinhos criada em 1966, Goscinny e Uderzo imaginavam que Astérix lutava com o primo britânico contra os romanos, mas que às cinco em ponto o aliado dele acabava de combater para tomar uma… chávena de água quente, pois ainda não havia chá na Europa: “Limão e açúcar?”, “Só uma nuvem de leite, obrigado!”.


É o clássico chauvinismo francês que nesta ocasião troça de um hábito característico dos bretões: um consumo de chá bem maior dos que os Europeus e os Norte-americanos usam juntos, bem maior que a quantidade de cerveja que os próprios bretões bebem!
O chá é uma bebida preparada através da infusão de folhas, flores, raízes de chá, ou Camélia sinensis, uma planta originária do sudeste asiático; os mais antigos documentos que testemunham o seu uso são do seculo X depois de Cristo. Na Grã-Bretanha, Thomas Lipton abriu a primeira casa de chá em 1706, mas não foi ele o protagonista da sua introdução no país, pois foi precedido por uma portuguesa, e esta é uma historia que vale a pena contar.


Quando Carlos II de Inglaterra em 1660 subiu ao trono, no fim do austero período da ditadura militar do puritano Oliver Cromwell, o país foi aliviado por uma presença bondosa, ao ponto que o rei foi nomeado “O alegre monarca”.


Ele casou-se em 1662 com a princesa Catarina de Bragança, filha de João IV de Portugal, que lhe levou um dote notável: a posse de Tânger e Bombaim, a abertura das rotas para Brasil e 500 libras, tendo obtido em troca inúmeros cornos (Carlos II tive catorze filho ilegítimos!) e a dedicatória do que hoje é o bairro nova-iorquino de Queens. Contudo o rei amava aquela mulher, que ele protegeu contra as acusações de conspiração católica, até se converter ele mesmo no leito de morte.
Nos anos sessenta do século XVII, na Inglaterra, uma onça de chá custava duas libras esterlinas (um operário ganhava acerca de cinco libras por ano!), e era usado só como remédio; além disso era de qualidade inferior relativamente ao que usavam chineses e japoneses.
Seja o futuro rei no seu exílio dinamarquês, seja a princesa portuguesa em Lisboa eram consumidores especializados de chá e tudo isto por uma razão fundamental: Dinamarca e Portugal estavam envolvidos numa luta feroz pelo comércio mundial do chá. De facto, Portugal teve duas primazias em relação à introdução do chá na Europa: a da introdução do consumo de chá e a introdução, em 1750, do cultivo do chá.
Foram produzidos, na Ilha de São Miguel em zonas de micro-clima como Porto Formoso e Capelas, 10 kg de chá preto e 8 kg de chá verde. No entanto seria só um século depois que, com a chegada de mão de obra especializada, a produção se tornaria consequente, passando a haver uma aposta na industrialização do processamento após a coleta das folhas.


No que diz respeito ao papel de Catarina na introdução do chá em Inglaterra, não há dúvidas que foi fundamental: em primeiro lugar ela buscava os melhores chás e sobretudo ensinou às mulheres da alta sociedade (lembre-se o alto custo da matéria prima) as maneiras melhores para preparar a infusão; além disso foi o facto de levar consigo a posse de Bombaim que permitiu aos bretões comerciar chá. De facto em 1675 já era possivel aos mais ricos comprar chá e no século seguinte a classe média começou a imitar esta moda.
Quando ficou viúva, Catarina voltou a Lisboa, onde aliás obteve a regência por doença do irmão Pedro II; morreu em 1705.



O mistério do nome

A palavra chinesa do chá tem duas formas completamente distintas de se pronunciar. Uma é 'te' que vem da palavra malaia para a bebida, usada pelo Dialeto Min que se encontra em Amoy. Outra é usada em cantonês e mandarim, que soa como cha e significa 'apanhar, colher'.
Esta duplicidade fez com que o nome do chá nas línguas não chinesas as dividisse em dois grupos: línguas que usam derivados da palavra Te: dinamarquês, holandês, inglês, italiano, francês, espanhol (aqui se vê a difusão do nome pelo comércio marítimo colonial); línguas que usam derivados da palavra Cha: hindi, persa, russo, turco, árabe (e aqui se vê a difusão por comércio caravaneiro tradicional); japonês e português (países ligados por antiga relação).
Como é evidente, foi prerogativa do rei Carlos II escolher para os ingleses o nome da bebida, mas foi a portuguesa Catarina de Bragança a fazer com que eles a saboreassem!

Alessandro Cannarsa

(Revisão linguística por Francisco de Almeida Dias: Via dei Portoghesi)

A «certa pausa» em que mora o rei de Chipre


As Navegações intemporais de Sophia de Mello Breyner Andresen

Navegações, escrito num período que vai desde 1977 até 1982, marca, de certa maneira, uma maturidade poética mais profunda de Sophia de Mello Breyner Andresen. Já a tripartição da obra – dividida em «Lisboa», «As Ilhas» e «Deriva» – pode ser tomada como testemunho de um projecto de alta complexidade e, ao mesmo tempo, “facílimo” para um eu-lírico que já atingiu os máximos degraus de pureza e significação. Em Navegações, de facto, Sophia resolve aproximar os tópicos – em aparência – ambiciosíssimos de uma reelaboração da história portuguesa (e, nomeadamente, da época dos descobrimentos) às próprias raízes do seu pensamento poético: o contraste entre o real e o imaginário, isto é, a indissociabilidade da poesia e da vida – que faz com que a poetisa sempre lute para reconstruir a vivência por meio dos versos –; o amor-espanto-deslumbramento diante da natureza e, ainda mais, do mar aberto; o classicismo, a descoberta da Grécia bem-amada, do «país da imanência sem mácula» [1].
Sophia, como muitos outros autores portugueses, revisitou frequentemente o período das Grandes Navegações – que dão o título à colectânea. Contudo, Navegações vai muito além de um mero regresso a bordo das caravelas dos Lusíadas celebrados por Camões. Sophia – “partindo” mesmo de «Lisboa» – acompanha outra epopeia, tanto mais épica do que a de Camões porque mais verdadeira, vivida pela própria poeta que se torna metáfora de todos os portugueses que se lançam ao mar – uma epopeia feita de fascinação pelo que se apresenta ao olhar, e de fome pelo que ainda não se vê, o desconhecido, o longínquo. «Digo para ver» [2], começa Sophia, e a palavra-verso torna-se criação visível, realidade possuída através do som-olhar. E então a partida para as Ilhas, a audácia que é de todo um povo e de um só poeta: «E ousaram – aventura a mais incrível – / Viver a inteireza do possível» [3]. Os três, Portugal, a poeta e os descobridores lusitanos, «Navegavam sem o mapa que faziam» [4] – numa espécie de cegueira que é ansiedade pelo novo e angústia pelas intrigas provincianas [5].
Ou melhor, no caso de Sophia – no caso da oficina poética de Sophia –, essa angústia coincide com o peso e o incómodo devido aos simples deveres quotidianos que cada vez mais afastam o tempo imóvel da gestação poética, o silêncio sossegado indispensável para os versos. Sabe-se dos muitos afazeres que a mulher-Sophia, mãe de cinco filhos, tinha de enfrentar na rotina do dia-a-dia. Aliás, ela nunca escondeu quanto o trivial e o quotidiano – em particular tudo o que tivesse relação com a vida moderna e ofegante da cidade – fosse inimigo do acto literário. Outra Penélope, Sophia sempre procurou o intervalo adormecido e mudo da noite para encontrar o espaço da sua alma. Refluxo das ondas entre dois excessos, as horas da noite tornar-se-ão o teatro privilegiado da criação poética de Sophia: «Desfaço durante a noite o meu caminho. / Tudo quanto teci não é verdade, / Mas tempo, para ocupar o tempo morto, / E cada dia me afasto e cada noite me aproximo» [6].
Noite, tempo fora do tempo, instante não-instante e, por isso mesmo, eternidade. «A hora perfeita em que se cala / O confuso murmurar das gentes / E dentro de nós finalmente fala / A voz grave dos sonhos indolentes / (...) / É esta hora em que o tempo é abolido» [7]. Num elucidativo estudo de Márcia Helena Saldanha Barbosa, bem se destaca essa contínua procura de um tempo alheio, junta com a «fragilidade dos intervalos, temporariamente fundados no curso dos acontecimentos, e a semelhança existente entre a plenitude dessas pausas e aquela que caracteriza as “pausas do verso”» [8].
Noutros termos, Sophia escolhe o (não-)espaço temporal da deriva nocturna para se abandonar à deriva poética.
E eis que chegamos mesmo ao poema «XVI – Deriva» de Navegações:
Há no rei de Chipre
Um certo mistério
Não só o ser grego
Sendo tão assírio
Mas certo sossego
E certo recuo
Entre duas guerras –
Seu corpo de espiga
Coluna de tréguas
Mora em certa pausa
Que nunca encontrei
– Clareza das ilhas
Que tanto busquei
Com clara evidência, o texto está marcado por duas grandes identificações. Em primeiro lugar – e depois de uma leitura superficial – a da autora com a figura exótica, oriental, não-lusitana do soberano da ilha de Chipre. Sucessivamente, a um nível de interpretação mais aprofundado, a identificação da aspiração da poeta com aquele intervalo temporal enigmático, talvez inalcançável, de quietude e «tréguas», com aquela «certa pausa», em que mora o rei fabuloso. Intervalo, este, em que se situa a «Clareza das ilhas / Que tanto busquei» – isto é, a nitidez mais pura e afinada da actividade lírica e das suas obras. Faz-nos observar oportunamente – e assim recuperando a dimensão “histórica” de Navegações – M. H. Saldanha Barbosa que «o sujeito poético da obra de Sophia Andresen é um sobrevivente de duas guerras: de um lado, àquela relativa às conquistas e às derrotas experimentadas por Portugal no passado; de outro, as batalhas miúdas do dia-a-dia, vividas hoje de forma individual, mas oriundas de um fundo comum e igualmente desgastantes» [9].
Mas a “deriva” do rei de Chipre não falta de nos mostrar uma das dicotomias mais repetidas dos versos de Sophia: a oposição entre a confusão, ou melhor, a sobrecarga desviante da modernidade – do tempo-hoje –, e a simplicidade limpa, marmórea, originária – e absolutamente atemporal – da antiguidade. Essa intemporalidade é «o rosto do real» [10] sobre o qual Sophia se debruçará. É a Grécia e o sobressalto que ela lhe deu quando a visitou pela primeira vez, em Setembro de 1963. «Numa carta a Sena de meados do ano seguinte, falará desse primeiro encontro con incontido entusiasmo: “[...] na Grécia encontrei um mundo em que já não ousava acreditar. Agora tenho o espanto de o saber real e não imaginado. O que eu sabia da Grécia adivinhei-o através de pedras, pinhas, resinas, água e luz. Mas apenas como fragmentos dipersos que a minha imaginação reuniu. Ali encontrei as coisas todas inteiras e presentes na sua unidade. Não estou a falar só de coisas, mas da ligação do homem com as coisas”» [11].
Talvez, para que a «ligação do homem com as coisas» possa cumprir-se deveras, seja preciso ter aquele mesmo «corpo de espiga / Coluna de tréguas» – morar naquela mesma «certa pausa» em que o rei de Chipre há sempre mora.

Stefano Valente

(Agradecem-se Francisco de Almeida Dias e José Eduardo Lopes)


[1] Como ela mesma afirmará em Dual («Arquipélago») de 1972.
[2] Navegações, «Lisboa».
[3] Navegações, «III – As Ilhas».
[4] Navegações, «VI – As Ilhas».
[5] Será a própria Sophia a escrever «Camões assume Portugal no campo da História. Não apenas porque escreve Os Lusíadas, mas porque vive tão exemplarmente a sua condição de português, e nele Portugal se vive.
Como Portugal, ele è simultaneamente realização e frustração, encontro e desencontro, ensombramento e descobrimento.
Como Portugal, ele volta de África estropiado, vencedor e vencido, e da Índia regressa deslumbrado e naufragado. Como Portugal, ele conhece a livre respiração dos longos mares e a asfixia entre provincianas intrigas.
Como Portugal, de todas as riquezas volta pobre» (Sophia de Mello Breyner Andresen, «Luís de Camões: ensombramentos e descobrimentos», Cadernos de Literatura, n.° 5, Coimbra 1980).
[6] De «Penélope», em Coral, 1951.
[7] De «É esta a hora...», em Dia do Mar - I, 1947
[8] Márcia Helena Saldanha Barbosa, «Nas pausas do verso: a trama dos acontecimentos e seus intervalos na poesia de Sophia Andresen», em Navegações, v. 3 n.° 2, Universidade de Passo Fundo 2010, p. 186.
[9] Ibidem.
[10] Sophia de Mello Breyner Andresen, de «Em Hydra, evocando Fernando Pessoa», em Dual IV-V, 1972.
[11] Fernando J. B. Martinho, Sophia na Grécia com Pessoa, Colóquio Internacional Sophia de Mello Breyner Andresen – 27 e 28 de Jan. de 2011 – Fund. Calouste Gulbenkian, p. 5.

Para uma leitura da arte de Paula Rêgo

O que é mais marcante da obra de Paula Rêgo (Lisboa, 1935) é o seu ser alheia à arte contemporânea e aos movimentos actuais (nomeadamente o movimento modernista), nos quais, contudo, boa parte da crítica a inclui.
Trata-se, possivelmente, da enorme importância que o desenho “realista” tem para a artista: os traços dela inserem-se numa poética de naturalismo expressionista – mas um realismo que sempre se origina da observação do verdadeiro. (Declara a própria Paula Rêgo: «É tudo copiado à vista». E, com humildade ou ironia, acrescenta: «Aprender a desenhar é muito importante. Eu também não sei muito bem, mas estou a aprender».)
Os temas tratados pela pintora fazem ressaltar uma visão escandalosa da sexualidade e da morte –  assuntos que, com certeza, não são novos nem produzem uma ruptura totalmente original. È provável, porém, que tenhamos de relevar um outro elemento das representações por Paula Rêgo: a ausência de normalidade, ou melhor, a normalidade que é a exploração, a análise do limite extremo da personalidade femenina – que, o mais das vezes, coincide com um estudo psicológico (ou até quase anatómico) da solidão da mulher. A mulher quase sempre é representada consigo própria, imersa no abismo do tédio (veja-se, por exemplo, Lush) – que é também o momento em que qualquer crise, qualquer delírio, qualquer abandono pode acontecer.
A de Paula Rêgo é, no fundo, a cristalização do instantâneo: do tempo – quotidianamente grotesco, hórrido ou cruel, ou apenas banal – em que bailarinas, meninas (As Meninas, obra conjunta com a escritora Agustina Bessa Luís – 2001), loucas, ou simplesmente mulheres adormecidas, contam as suas histórias. Histórias sempre impiedosas – como é sem piedade, inelutavilmente, qualquer destino humano.


Bem se compreende, portanto, como a artista portuguesa (mas também inglesa – pois foi viver para Londres em 1951, e aí tem continuado os seus estudos) se ponha muito às margens do chamado mainstream da arte contemporânea, marcado pela perda de significado, e, ao contrário, se reinsira na linha da grande tradição figurativa europeia e expressionista (com fortes referências à pintura da República de Weimar).
Enfim, talvez a mensagem principal da pintora seja o do seu quadro “kafkiano” Metamorphosis, em que as pernas abertas do homem-Gregor Samsa deitado e nu (pernas iguais às de uma mulher que está a parir) comunicam-nos a imensa dor de toda a mudança – exactamente de toda a metamórfose – que é implícita em cada vivência humana.
Stefano Valente