A «certa pausa» em que mora o rei de Chipre


As Navegações intemporais de Sophia de Mello Breyner Andresen

Navegações, escrito num período que vai desde 1977 até 1982, marca, de certa maneira, uma maturidade poética mais profunda de Sophia de Mello Breyner Andresen. Já a tripartição da obra – dividida em «Lisboa», «As Ilhas» e «Deriva» – pode ser tomada como testemunho de um projecto de alta complexidade e, ao mesmo tempo, “facílimo” para um eu-lírico que já atingiu os máximos degraus de pureza e significação. Em Navegações, de facto, Sophia resolve aproximar os tópicos – em aparência – ambiciosíssimos de uma reelaboração da história portuguesa (e, nomeadamente, da época dos descobrimentos) às próprias raízes do seu pensamento poético: o contraste entre o real e o imaginário, isto é, a indissociabilidade da poesia e da vida – que faz com que a poetisa sempre lute para reconstruir a vivência por meio dos versos –; o amor-espanto-deslumbramento diante da natureza e, ainda mais, do mar aberto; o classicismo, a descoberta da Grécia bem-amada, do «país da imanência sem mácula» [1].
Sophia, como muitos outros autores portugueses, revisitou frequentemente o período das Grandes Navegações – que dão o título à colectânea. Contudo, Navegações vai muito além de um mero regresso a bordo das caravelas dos Lusíadas celebrados por Camões. Sophia – “partindo” mesmo de «Lisboa» – acompanha outra epopeia, tanto mais épica do que a de Camões porque mais verdadeira, vivida pela própria poeta que se torna metáfora de todos os portugueses que se lançam ao mar – uma epopeia feita de fascinação pelo que se apresenta ao olhar, e de fome pelo que ainda não se vê, o desconhecido, o longínquo. «Digo para ver» [2], começa Sophia, e a palavra-verso torna-se criação visível, realidade possuída através do som-olhar. E então a partida para as Ilhas, a audácia que é de todo um povo e de um só poeta: «E ousaram – aventura a mais incrível – / Viver a inteireza do possível» [3]. Os três, Portugal, a poeta e os descobridores lusitanos, «Navegavam sem o mapa que faziam» [4] – numa espécie de cegueira que é ansiedade pelo novo e angústia pelas intrigas provincianas [5].
Ou melhor, no caso de Sophia – no caso da oficina poética de Sophia –, essa angústia coincide com o peso e o incómodo devido aos simples deveres quotidianos que cada vez mais afastam o tempo imóvel da gestação poética, o silêncio sossegado indispensável para os versos. Sabe-se dos muitos afazeres que a mulher-Sophia, mãe de cinco filhos, tinha de enfrentar na rotina do dia-a-dia. Aliás, ela nunca escondeu quanto o trivial e o quotidiano – em particular tudo o que tivesse relação com a vida moderna e ofegante da cidade – fosse inimigo do acto literário. Outra Penélope, Sophia sempre procurou o intervalo adormecido e mudo da noite para encontrar o espaço da sua alma. Refluxo das ondas entre dois excessos, as horas da noite tornar-se-ão o teatro privilegiado da criação poética de Sophia: «Desfaço durante a noite o meu caminho. / Tudo quanto teci não é verdade, / Mas tempo, para ocupar o tempo morto, / E cada dia me afasto e cada noite me aproximo» [6].
Noite, tempo fora do tempo, instante não-instante e, por isso mesmo, eternidade. «A hora perfeita em que se cala / O confuso murmurar das gentes / E dentro de nós finalmente fala / A voz grave dos sonhos indolentes / (...) / É esta hora em que o tempo é abolido» [7]. Num elucidativo estudo de Márcia Helena Saldanha Barbosa, bem se destaca essa contínua procura de um tempo alheio, junta com a «fragilidade dos intervalos, temporariamente fundados no curso dos acontecimentos, e a semelhança existente entre a plenitude dessas pausas e aquela que caracteriza as “pausas do verso”» [8].
Noutros termos, Sophia escolhe o (não-)espaço temporal da deriva nocturna para se abandonar à deriva poética.
E eis que chegamos mesmo ao poema «XVI – Deriva» de Navegações:
Há no rei de Chipre
Um certo mistério
Não só o ser grego
Sendo tão assírio
Mas certo sossego
E certo recuo
Entre duas guerras –
Seu corpo de espiga
Coluna de tréguas
Mora em certa pausa
Que nunca encontrei
– Clareza das ilhas
Que tanto busquei
Com clara evidência, o texto está marcado por duas grandes identificações. Em primeiro lugar – e depois de uma leitura superficial – a da autora com a figura exótica, oriental, não-lusitana do soberano da ilha de Chipre. Sucessivamente, a um nível de interpretação mais aprofundado, a identificação da aspiração da poeta com aquele intervalo temporal enigmático, talvez inalcançável, de quietude e «tréguas», com aquela «certa pausa», em que mora o rei fabuloso. Intervalo, este, em que se situa a «Clareza das ilhas / Que tanto busquei» – isto é, a nitidez mais pura e afinada da actividade lírica e das suas obras. Faz-nos observar oportunamente – e assim recuperando a dimensão “histórica” de Navegações – M. H. Saldanha Barbosa que «o sujeito poético da obra de Sophia Andresen é um sobrevivente de duas guerras: de um lado, àquela relativa às conquistas e às derrotas experimentadas por Portugal no passado; de outro, as batalhas miúdas do dia-a-dia, vividas hoje de forma individual, mas oriundas de um fundo comum e igualmente desgastantes» [9].
Mas a “deriva” do rei de Chipre não falta de nos mostrar uma das dicotomias mais repetidas dos versos de Sophia: a oposição entre a confusão, ou melhor, a sobrecarga desviante da modernidade – do tempo-hoje –, e a simplicidade limpa, marmórea, originária – e absolutamente atemporal – da antiguidade. Essa intemporalidade é «o rosto do real» [10] sobre o qual Sophia se debruçará. É a Grécia e o sobressalto que ela lhe deu quando a visitou pela primeira vez, em Setembro de 1963. «Numa carta a Sena de meados do ano seguinte, falará desse primeiro encontro con incontido entusiasmo: “[...] na Grécia encontrei um mundo em que já não ousava acreditar. Agora tenho o espanto de o saber real e não imaginado. O que eu sabia da Grécia adivinhei-o através de pedras, pinhas, resinas, água e luz. Mas apenas como fragmentos dipersos que a minha imaginação reuniu. Ali encontrei as coisas todas inteiras e presentes na sua unidade. Não estou a falar só de coisas, mas da ligação do homem com as coisas”» [11].
Talvez, para que a «ligação do homem com as coisas» possa cumprir-se deveras, seja preciso ter aquele mesmo «corpo de espiga / Coluna de tréguas» – morar naquela mesma «certa pausa» em que o rei de Chipre há sempre mora.

Stefano Valente

(Agradecem-se Francisco de Almeida Dias e José Eduardo Lopes)


[1] Como ela mesma afirmará em Dual («Arquipélago») de 1972.
[2] Navegações, «Lisboa».
[3] Navegações, «III – As Ilhas».
[4] Navegações, «VI – As Ilhas».
[5] Será a própria Sophia a escrever «Camões assume Portugal no campo da História. Não apenas porque escreve Os Lusíadas, mas porque vive tão exemplarmente a sua condição de português, e nele Portugal se vive.
Como Portugal, ele è simultaneamente realização e frustração, encontro e desencontro, ensombramento e descobrimento.
Como Portugal, ele volta de África estropiado, vencedor e vencido, e da Índia regressa deslumbrado e naufragado. Como Portugal, ele conhece a livre respiração dos longos mares e a asfixia entre provincianas intrigas.
Como Portugal, de todas as riquezas volta pobre» (Sophia de Mello Breyner Andresen, «Luís de Camões: ensombramentos e descobrimentos», Cadernos de Literatura, n.° 5, Coimbra 1980).
[6] De «Penélope», em Coral, 1951.
[7] De «É esta a hora...», em Dia do Mar - I, 1947
[8] Márcia Helena Saldanha Barbosa, «Nas pausas do verso: a trama dos acontecimentos e seus intervalos na poesia de Sophia Andresen», em Navegações, v. 3 n.° 2, Universidade de Passo Fundo 2010, p. 186.
[9] Ibidem.
[10] Sophia de Mello Breyner Andresen, de «Em Hydra, evocando Fernando Pessoa», em Dual IV-V, 1972.
[11] Fernando J. B. Martinho, Sophia na Grécia com Pessoa, Colóquio Internacional Sophia de Mello Breyner Andresen – 27 e 28 de Jan. de 2011 – Fund. Calouste Gulbenkian, p. 5.

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